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quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Sofrendo a Gramática - Mauro A. Perini

 


Nossa sabedoria gramatical oculta (que significa " saber português)

O "Saber" da língua portuguesa é considerado privilégio de poucos, raras pessoas se atrevem a dizer que conhecem a língua. Tendemos a achar que falamos "de qualquer jeito", sem regras, ou até errado, e dois fatores contribuem para esta convicção: Primeiro, a que falamos com uma facilidade muito grande (de certo modo, até sem pensar), e que associamos conhecimento a uma reflexão consciente e trabalhosa. Mas há uma boa notícia: sabemos muito bem a nossa língua!
A escola nos incita a acreditar que o português só é correto de acordo com as normas gramaticais, porém, nosso conhecimento da língua é complexo e seguro. Separa-se o conhecimento em duas partes para entendê-los melhor: implícito e explícito.

Vamos comparar com um caminhar. Tenho duas pernas saudáveis e posso me locomover, sentar, pular, correr, subir e descer escadas... Não compreendo todo o complexo do sistema de músculos e tendões e tudo que acontece no meu corpo quando ando, mas eu sei andar. Nunca ninguém me disse que "o modo que eu andava não era eficiente". É eficiente para as minhas atividades.
Portanto, eis a pergunta: Tenho ou não conhecimento quanto a habilidade de andar? A resposta é que tenho a um nível importante pras minhas necessidades, portanto, "sei andar". - Este é meu conhecimento implícito.
O que não sei é explicar de acordo com a anatomia e fisiologia quais são as ações e reações que meu corpo exerce sobre cada músculo, cada tendão, e ainda mais para explicar isso para outra pessoa. Eu não poderia colocar tudo isso em um papel. Mas, ninguém diria que eu ando de qualquer jeito, só porque não tenho conhecimento fisiológico do ato de andar. Isto também se aplica ao conhecimento da língua. possuímos um conhecimento explícito suficiente para poder nos comunicar com outras pessoas ao nosso redor, e reconhecer algumas sequências de palavras que fazem ou não sentido de acordo com a língua portuguesa.

É claro que poderíamos compreender:

(1) Os meus pretensos amigos de Belo Horizonte.

Mesmo sem conhecimento explícito, também podemos admitir que as seguintes frases não são comuns ou não possuem formação correta:

(2) Os meus amigos de Belo Horizonte pretensos.
(3) Os meus Belo Horizonte pretensos de amigos.

Nosso julgamento nos torna aptos a reconhecer que estas ordenações de palavras não coincidem com a estrutura de nossa língua.
De onde tiramos este conhecimento? Da nossa experiência vivida, nosso conhecimento implícito, o principal objeto da investigação dos linguistas.

Ver ou não Ver (verdade e ficções sobre a língua)

O homem sempre teve a necessidade de entender o mundo que habitam. Criaram a ciência, a religião, e todos os tipos de explicações -mais ou menos- racionais para dar conta dos fatos que os cercam.
Mas não temos acesso aos fatos diretamente, porque a mente humana é limitada para compreendê-los. O aspecto mais traiçoeiro da mente humana é a grande vontade de encontrarmos coisas "certas": a vontade de que estes fatos venham confirmar brilhantemente nossas convicções. 
Por exemplo, quando Galileu utilizou a luneta pela primeira vez para observar o céu, descobriu quatro satélites de Júpiter - A opinião geral ficou contra ele, pois só poderiam haver 7 planetas, alias, só haviam 7 aberturas na cabeça, 7 dias na semana, 7 metais, portanto os planetas eram unicamente sete: Sol, Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno. Concluímos que Galileu não viu nenhum satélite. Ele "não podia" ter visto, era loucura, ou um baita de um mentiroso.

Todas as áreas de investigação correm este risco. A gramática não é exceção.
Começando com um caso simples, com relação a ortografia: Tomate.
na palavra tomate, a primeira vogal da palavra é pronunciada como /u/. Isto não é uma característica da pronuncia não-culta, mas indiferente da escolarização, perceba, quantas pessoas perguntam o preço do "tomate" e quantas perguntam do /tumati/? A resposta parece mais clara, mas muitas pessoas ainda insistem que o correto é /tomate/.
Não será possível chegar a esta conclusão observando os fatos - de que ninguém fala /tomate/ - já que eles não se sustentam. Então leva-se a crer que o certo da pronuncia é como se escreve (sempre que possível); é como se a escrita estivesse primarizada e a fala, fadada ao segundo plano.

O que acontece? Galileu reconheceria imediatamente: estamos colocando nossas crenças, expectativas e desejos à frente dos próprios dados da observação. E, de posse dessas crenças, expectativas e desejos, preferimos, em vez de olhar a realidade, fabricar na nossa cabeça nossa própria realidade.

As duas Língua do Brasil (qual é mesmo a língua que falamos?)

As língua diferem muito pouco no que diz respeito a suas capacidades  expressivas. Mas como é evidente, diferem muitíssimo quanto a sua importância cultural, política e comercial. Temos, por um lado, línguas como o inglês, o espanhol, o russo, o chinês, o francês (e, mais modestamente, o português) que servem a vastas comunidades, sendo intensivamente utilizada na política, na TV e na impressa, na ciência, na literatura etc. Elas são chamadas, um tanto preconceituosamente, “línguas de civilização”. Por outro lado, existem línguas de interesse puramente local. Essas línguas nem sempre são faladas por comunidades diminutas: embora algumas só tenham algumas centenas de falantes. O que as opõe às línguas de civilização é que não são usadas intensivamente em toda gama das atividades da vida moderna. O caso mais extremo dessa limitação é o das línguas realmente desprovidas de tradição escrita. Estas podem possuir uma ortografia, em geral de invenção recente, mas o corpo de material escrito nelas é muito pequeno e restrito a certas áreas de interesse. Tais línguas se chamam “agrafas”. É o caso do xavante, do changana, do bergamasco, de muitas pequenas línguas da Índia. Existe uma verdadeira multidão de línguas ágrafas pelo mundo afora. Em geral, elas convivem com uma das línguas de civilização, que seus falantes utilizam quando tratam assuntos fora das necessidades do dia a dia. Pode haver discussão entre os especialistas sobre quando é que uma língua deve ser considerada ágrafa. Muitos sustentam que o maia,língua indígena do sul do México, não é ágrafo, já que existem textos nessa língua há vários séculos. Qualquer um pode ver diferença nítida entre uma língua que serve a todas as necessidades da vida moderna e uma que não faz. A esta última chamaremos de “ágrafa”. Nosso segundo tema é o seguinte: Que língua se fala no Brasil? Todo mundo sabe que a língua do Brasil é o português. Além do mais, é uma língua de civilização, segundo a definição que vimos. Não há dúvida de que a língua de civilização que nos serve é o português. A imensa maioria da população é incapaz de se exprimir, e mesmo de ler, em qualquer outra língua. Mas notem que eu não perguntei qual era a língua de civilização do Brasil.  Perguntei que língua se fala no Brasil. Explicando melhor: será que falamos a mesma língua que escrevemos e lemos?

- Me empresta ele aí um minuto.

É importante observar que essa é uma forma correta de falar naquele local e naquele momento. E que qualquer pessoa poderia utilizar uma frase como essa (não apenas as chamadas “pessoas incultas”). A frase acima faz parte do  repertório linguístico de todos os brasileiros; em uma palavra, é assim que nós falamos. Podemos escrever diferente ( por exemplo: empreste-me um minuto), mas falamos daquele jeito. Imagine a pessoa falando, e verá que essa fala é perfeitamente natural. Mas escrita ela choca um pouco, porque está cheia de traços que não costumamos encontrar em textos. Na língua falada em Minas, também raramente ocorre o presente do subjuntivo (façamos, gostem, vá); essas formas são, entretando, usuais no Norte e Nordeste do Brasil. O verbo falado difere do verbo escrito em outros detalhes. Assim, escreve-se quando eu te vir. Mas na fala essa expressão é difícil até de entender; falamos quando eu te ver. Na fala, o pronome nós é cada vez mais substituído por a gente, e, paralelamente, as formas de primeira pessoa do plural (fizemos, gostamos, íamos) vão caindo em desuso. Há pessoas que não as usam praticamente nunca.
Mais um exemplo: o imperativo se forma de maneira distinta na fala e na escrita. Falando, dizemos: vem cá; mas escrevemos venha cá.
As diferenças são muitas, como todos sabemos. Elas constituem uma das dificuldades principais que enfrentamos na escola, ao tentar produzir textos escritos.
A língua que aprendemos com nossos pais, irmãos e avós é a mesma que falamos, mas não é a que escrevemos. As diferenças são bastante profundas, a ponto de, em certos casos impedir a comunicação.

Em outras palavras, há duas línguas no Brasil: uma que se escreve; e outra que se fala. E é esta última que é a língua materna dos brasileiros; a outra tem de ser aprendida na escola, e a maior parte da população nunca chega a dominá-la adequadamente.
Vamos chamar a língua no Brasil de vernáculo brasileiro. Assim, diremos que no Brasil se escreve em português, mas a língua que se fala no Brasil é o vernáculo brasileiro.
O português e o vernáculo são, é claro, línguas muito parecidas. Mas não são em absoluto idênticas. No entanto, isso não vingou, pelo menos até o momento. Continuamos a escrever em português e a considerar o vernáculo uma maneira errada de falar.
Nossa língua materna não é o português, é o vernáculo brasileiro- isso não é um slogan, nem uma posição política; é o simples reconhecimento de um fato.
Assim, não se cogita de substituir o português pelo vernáculo na escrita. Mas, nos últimos anos, tem havido um aumento notável de interesse pelo vernáculo como língua a ser estudada. Há esperanças, portanto, de que, dentro de alguns anos, se possa dispor de gramáticas adequadas da nossa língua materna, por tanto tempo ignorada, negada e desprezada.
Querem mais? Na fala, a marca de plural não precisa aparecer em todos os elementos do sintagma. Assim, formas como esses menino levado (ou mesmo, pelo menos em Minas, ques menino levado!) existem na fala de todas as pessoas.


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